As Alter-Nativas do Bairro
Quem pensava que o Bairro do Gonçalo M. Tavares era cul-de-sac, desengane-se. Existem, afinal, alter-nativas. Excepto ao meio-dia, altura em que a sombra é menor, segundo as indicações adicionais dos sinais de trânsito que se impõem tiranicamente às linhas de orientação do paradigmático urbanismo do escritor, transformando momentaneamente todas as ruas em becos sem saída. Os homens de sucesso, como O Senhor Brecht, são detentores de uma sombra muito longa ao início e final do dia — As pessoas sem sucesso também. É possível entrar e sair do Bairro pelas sombras d’O Senhor Brecht, que no entanto só escreve ao meio-dia, para nos poder sentenciar com maior precisão. Mas como a Inês Pargana é especialista em leitura dinâmica, desdobrou os textos do nascer ao pôr-do-sol, fixou todas as suas sombras com vigorosas linhas — inspirando-se no método de Dibutade, a primeira desenhadora — e transformou-as pela cor em pintura. Eis que o Bairro do Gonçalo assiste a um surpreendente acontecimento de alter-natividade. Nunca mais foi o mesmo.
Até à data, a Inês não se quer responsabilizar por ter sobrepovoado o Bairro do Gonçalo com alter-nativas. Houve quem acreditasse que era uma estratégia de fixação, não de sombras, mas de cotas para senhoras, neste Bairro até então de senhores. Esta coisa de recalcar as sombras é, dizem os psicólogos e psicanalistas, muito mais complexa do que imaginamos; parece que acabamos sempre a projectarmo-nos uns nos outros. É sempre melhor exercitar calma e criativamente a auto-ironia, como o Agostinho da Silva aconselhava. Talvez por isso a Inês tenha deixado de projectar arquitetura. Compreendo-a, de resto, muito bem. Expõe[-se] na Casa da Avenida em Setúbal, mas ainda assim, diz que A narrativa são os outros… Afinal, todos sabemos, porém nem sempre, que as coisas da arte têm mais que ver com a alteridade e menos com a identidade. A ingerência do Outro (=alter) que habita o inconsciente, partilhando connosco o grande caldeirão da criação, é, inevitável — Nunca saberemos quando neste Bairro se dará o próximo assalto à mão armada, de pincel ou esferográfica…Há uma certa insegurança no ar, podemos até nos sentir vulneráveis, o que é preciso, e não só porque é preciso: É tão preciso que corta o ar à pincelada e pelo aforismo.
Surgem então nesta exposição gloriosos atos falhados proporcionais ao sucesso do Senhor Brecht. O Gonçalo já nos avisa na contra-capa do seu livro “O senhor Brecht é um contador de histórias, histórias por vezes políticas, e com um certo humor negro. Tem sucesso e isso é um problema”. Os deslizes acontecem — embora não só — por via de erros e/ou supressões como a seguinte, que aqui assinalamos com parêntesis rectos, como manda a convenção: “na[rra]tiva”. Inês: Tu és uma alter-nativa; i.e., uma habitante outra do Bairro…Por favor, pára de culpar “os outros”! O gesto de apontar uma arma (pede-se ao leitor para fazer o gesto neste instante de modo a manter leitura dinâmica) implica-nos num ato falhado de dedos: Ao apontar o dedo indicador para o sentenciado, três apontam de volta. O polegar opositor é quem decide, como aliás desde sempre nos primatas — Os senhores que criaram os smartphones sabem o quão vantajoso é delegar a responsabilidade a este nosso ancestral decisor-opositor. Veja-se a arma-berbequim da Sátira pintada pela Inês, animal da cintura para baixo como o Gonçalo aponta, a partir de uma “Avaria” contada pelo Senhor Brecht, na qual o criminoso e o funcionário responsável pela sua execução trocam, literal e não figuradamente, de lugares.
Mas o que vem a ser isto da leitura dinâmica? Não, não é essa leitura dinâmica. O leitor desinteressado pode encontrar um vasto leque de ofertas e serviços para — e é este o objetivo principal dessa outra leitura dinâmica — aumentar a sua velocidade de leitura. O que pressupõe, evidentemente, — ou se calhar não tão evidentemente — recalcar a Senhora Dona Anima que opera nas profundezas do Ser, numa voluptuosa colaboração criativa, e portanto de alteridade, com o Senhor Animus, segundo a concepção da psique humana do psicólogo Carl Jung. Com base na investigação destas duas instâncias, em A Poética do Devaneio, Gaston Bachelard defende a seguinte tese: “o devaneio está sob o signo da anima”. Por assim ser, “É nesse repouso feminino, longe das preocupações, das ambições, dos projetos, que vamos conhecer o repouso concreto, o repouso que descansa todo o nosso ser” — Ora esses outros leitores dinâmicos, não estão para tais devaneios.
Uma das técnicas dessa outra leitura dinâmica, para ler até 10 vezes mais rápido, é evitar a subvocalização; i.e., mexer os lábios ou até — imaginem — as cordas vocais enquanto se lê. Num outro ensaio, A Poética do Espaço, Gaston Bachelard fala-nos de como aprendeu com um barítono, por sua vez informado por psicólogos experimentais, que não se pode pensar na vogal a, sem que as cordas vocais se mobilizem, o que faz com que pronunciar a palavra vasto, lentamente, tenha um efeito particularmente curativo em caso de depressão. A relação entre personagem e máscara vem do Teatro Grego; per sona, significa através do som, o som que passava através dos orifícios das máscaras dos actores. Felizmente a leitura dinâmica da Inês e do Gonçalo não é tapa-buracos; nesta exposição as personas e as sombras podem caminhar juntas e desvairadamente à solta — o que aliás nos devolve uma certa humanidade. As personagens femininas, masculinas ou transgénero que nos habitam podem, em A narrativa são os outros — não fosse esta uma exposição de personagens e sombras — usar livremente as nossas cordas vocais e lábios…E claro, o par romântico pode encontrar-se nas margens das páginas dos livros: O Animus da Inês, a instância psíquica mais ativa, ali deixou uma série de anotações para a sua Anima, a habitante das profundezas do Ser, que são também expostas na Casa da Avenida. Não são propriamente românticas, mas cada par amoroso sabe de Si Mesmo. Isso, que também chamam de Self, i.e., isso que pode ser lido como selfie, se muito velozmente, e que se refere à totalidade psíquica que sempre nos escapará.
A Anima é — para os outros leitores dinâmicos — uma preguiçosa. E por falar em selfies, a Inês pediu aos seus seguidores do Instagram para lhe enviarem “retratos em versão preguiçosa”, após ter lido “Um país agradável” do Senhor Brecht, país esse povoado por pessoas preguiçosas. Pintou alguns em superfícies espelhadas e expôs. Foi no entanto tão lenta, que o Gonçalo sentenciou: “Todos os / Teus / re / Tratos são / falsos. / Até o espelho / está / Desatualizado”. Como se pode ler, é-me difícil transcrever a sentença, porque o escritor, afinal, também desenha. Os T’s são afinal ✝…Eis que sucede uma verdadeira chacina narcisista: Os re✝ratos, devido aos maus tratos, transformam-se em ratos e os ✝eus em eus mortos. E como com certeza já perceberam, para que a transcrição de uma sentença se torne um poema, as barras diagonais que separam os versos evitando que o poema ocupe inutilmente espaço na vertical ( / ), têm de passar a ser perpendiculares ao texto ( | ) — Como guilhotinas, precisas. Os outros leitores dinâmicos não apreciam coisas inúteis.
Após ver as pinturas da Inês pela primeira vez — pausa inútil para o leitor se aperceber que Inês rima com vez, embora não se verifique aquele excesso que nos suspende próprio da poesia, o que nos faz neste instante cair a pique — o Gonçalo, segundo palavras suas, sentiu “vontade de fazer qualquer coisa em conjunto”. Refere mesmo: “Senti uma ligação direta entre aquelas personagens por vezes assustadoras, por vezes intrigantes, com alguns dos meus textos e, de repente, houve uma ligação que me pareceu não apenas possível mas quase necessária” — Arriscou a alteridade nos vários cadernos de desenhos colocados lado a lado com as pinturas da Inês, como legendas outras — ou mesmo lendas outras — ainda que tenha desenvolvido alguns anticorpos. Ganhou essa (já) estranha imunidade que se adquire via vulnerabilidade — Mas em caso algum se pense que são legendas de santo.
Em A Expulsão do Outro, Byung-Chul Han fala-nos dos perigos da proliferação do idêntico, e por conseguinte, da identidade, por desaparecimento — ou recalcamento — do outro. Fala-nos do aturdimento gerado pelos ecrãs, onde a comunicação se dá via cumulativa e de modo a satisfazer e se adaptar completamente ao nosso gosto. E, ainda, que tal proliferação é “comatosa”, i.e., não geramos anticorpos para a gordura. O que me leva a crer que existem então muitos modos de obesidade mórbida, alguns até em corpos em muito boa forma física. Leio no caderno-guilhotina ao lado da pintura que comunica com o texto “Turistas”: “É im / por / ✝an / ✝e não ✝omar / banho / na / piscina dos Mortos [e uma linha desliza]”. Nesta pintura não há proliferação do idêntico.
O Outro irrompe como uma guilhotina — Já foste. Os pequenos textos são assinados pelo Gonçalo e…não são ass[ass]inados pelo Gonçalo. É o que acontece, quando se pensa e escreve ao mesmo tempo, sem possibilidade de revisão, como refere a propósito do seu acontecer — E que maravilhosa liberdade! Têm vontade própria; como aquelas assinaturas aparatosas, segundo os especialistas em grafologia, das pessoas que se dão muita importância, e portanto, que estão condenadas ao sucesso sem felicidade, que segundo um famoso coach de auto-ajuda, em tempos ao serviço do Sir Anthony Hopkins, é o próprio fracasso. Nesta coisa do sucesso é preciso, com precisão mortal, encontrar alter-nativas: Uma em particular, a nossa Anima, segundo Gaston Bachelard, onde “descansa todo o nosso ser”, e portanto, onde se descansa — por integração da personalidade — em paz ✝. Diria mesmo que são precisos abismos — e note-se, uma vez mais, como os pequenos textos parecem pouco resistir à gravidade — como que para poder morrer, e então renascer, neste ou noutro Bairro, através da felicidade do que pode ser-fazer coisas em conjunto. Desejemos-lhes, se possível com muita sinceridade, muito sucesso!
Madalena Folgado