O narrador é cada um de nós
Entre as palavras e o desenho há muitos mundos. E quando ambos se encontram, ocorre um fenómeno de multiplicação próximo — arrisco — daquilo a que os físicos chamam multiverso. A explosão de possibilidades é tal que há que curar o que se pretende mostrar, cuidando de dar a ver plurais ramificações sem, contudo, se correr excessivo risco de perder o pé. Para mim, é isto, no essencial, o exercício da curadoria. Um desejo expresso de contar uma estória — ou de abrir portas a várias — e um desenho (itinerário, enredo ou subenredo e ambicionadas reviravoltas) desse desejo. É isto, no essencial.
Gonçalo M. Tavares, que publicou quase há vinte anos “O Sr. Brecht e o Sucesso”, viu há tempos uns trabalhos de Inês Pargana e lançou-lhe o desafio de criar a partir de alguns textos seus. Ela assim fez, seleccionando doze dos quarenta e nove textos do livro citado, entre os que mais lhe sugeriram um diálogo que desejou potenciar com o observador. Em seguida, como num exercício de “cadáver esquisito”, e depois de ter visto as pinturas, o escritor puxou alguns fios e escreveu mais estórias.
Em exercício pendular, como todas as boas conversas, se concebeu o projecto curatorial desta exposição. Permitam-me que me detenha, agora, brevemente, apenas para desfazer o nó que acabei de dar.
As palavras também têm modas. Algumas desaparecem, como os chumaços nos vestidos e casacos dos anos 80, sem deixar saudades. Outras, de desvairadas naturezas, perdem-se da multidão para ecoar apenas, em momentos especiais, nas penas ou nas bocas de alguns curiosos amantes, como asinha, bem apessoado, aleivosia, formidável. Outras vão e vêm num movimento pendular, fazendo ligeiros sons ao bater nos limites e mantendo no curso um voo silencioso. Outras, ainda, são retumbantes. E pesadas. E insidiosas. E pretensiosas. Querem estar em todo o lado.
A curadoria é uma destas palavras. Tem raízes humildes, literalmente de um tempo em que os seus pés assentavam no húmus, no cuidado dos corpos, fossem eles de carne e osso ou dos objectos que esses corpos carnais foram criando ao longo de séculos. Mas, depois, especializou-se. E como algumas pessoas que sabendo de um assunto assumem saber de todos, também a curadoria assim agiu.
Não há como negar que existe um laço íntimo entre as palavras e as pessoas. E, assim, retomemos, a curadoria, depois de afunilar o seu campo de acção, tornou-se ambiciosa, quis lançar-se a novos domínios, achando-se, decerto, tão cheia de si que havia de aspirar à condição de incontornável. Ainda assim, no fundo, em casa, quando se descalça e volta ao seu tamanho normal, quando volta a sentir o chão directamente sob os pés, sem ter de manter a pose de um andar artificial, reconhece a sua natureza, aí sim, ao mesmo tempo simples e complexa, como todas as coisas: a da escolha. Respiramos, enfim, de alívio. Podemos falar sem complicações escusadas. A vida é demasiado curta para a desviar do essencial.
O desenho também tem modas. Algumas desaparecem sem deixar saudades. Etc., etc., etc. Posto isto, e observados todos os protocolos, podemos voltar ao essencial. Ou seja, de como, além do que se pensou para esta exposição para curar de nos dar conta de um processo narrativo para o qual somos convidados, se operam alguns dos seus processos.
O desenho une o mundo. As letras, as ideias, as formas. O desenho, a nossa primeira manifestação de descodificação do real, anterior à escrita, liga a mão à parte mais primitiva do cérebro e abre a porta a todos os monstros e seres alados. Os escritores, por usarem uma parte do cérebro mais recente e com relações mais complexas com o cérebro límbico, o das emoções, têm mais caminho a fazer para chegar às profundezas. Porém, é da natureza do escritor ser perseverante e temerário, amante das coisas escuras e escusas. Assim o descobrimos amiúde a caminho do abismo.
Estrutural e observador, racional e depurador, satírico e tocante, o desenho é uma ponte sem a qual cairíamos desamparados nas profundezas. Por vezes, como numa composição de Escher, é difícil perceber o que é e o que não é, constatando as impossíveis direcções em que corre a água, duvidando sobre qual o sentido do chão e do céu, sendo denso o mistério e o gosto de criar labirintos. O desenho tem meios tão perfeitos de imitar o real que chegamos a pensar que é dor a dor que deveras sente. Como pensamos que é cachimbo o cachimbo que ali não está. Porque o desenho é a sua própria realidade, mesmo quando reflecte aquelas com que nos deparamos todos os dias.
Mas porque falo aqui tanto em desenho, quando a própria artista se refere aos trabalhos como pintura? Não apenas porque esta é uma das filhas dilectas desta disciplina, mas também porque aqui a estrutura que dá corpo à mancha é sempre notória. É o desenho que aqui se move e respira (Mau Negócio, Os Turistas, ou Gato que guincha, por exemplo). É o desenho que organiza todo o corpo sobre o qual a pintura — a cor, a luz — se edifica. É o desenho que narra, desdobrando-se em contornos, texturas, expressões e volumes. É o desenho que nos capta e dirige o olhar para as mãos, os cabelos, as curvas das costas, as pernas dobradas, as bocas retorcidas e os olhares das personagens.
É o desenho que nos liga às palavras do escritor, que descobrimos nos pequenos cadernos que partilham o espaço da casa com as obras de Inês Pargana. Neles encontramos a rasura, os rabiscos, a caligrafia que invade os textos impressos, e a dúvida. Veja-se a pergunta “gato sem pelo?”. Pode parecer de menos, mas é o enunciado da dificuldade da escolha quanto à quantidade de linhas, quanto à forma da informação, quanto ao nível de síntese a usar — ou seja, quanto à selecção, ou curadoria do projecto do desenho.
Tudo isto para dizer que se há coisa que une a escrita e o desenho é o gosto multifacetado da criação de mundos e de juntar, através de infinitas linhas de desvairadas possibilidades, o real e o irreal; o que é, com o que nunca foi; o que poderia ter sido, ou que poderá vir a ser; o que se não for verdadeiro será ainda assim bem observado — ou a mentira que todos gostamos de contar a nós mesmos para nos divertirmos ou provarmos o gosto do medo. Ficção e desenho são primos próximos, se não mesmo irmãos.
E, se a escrita tem por método ir criando crescendos de tensão até um pico após o qual a descida é rápida e final (o leitor teria pouca paciência para remastigações, depois de resolvido o problema a que o escritor se propõe dar tempo de antena), o desenho (como a sua filha, a pintura) condensa isso num momento único.
Eis, assim, o essencial. Na exposição “A Narrativa são os outros”, num jogo pendular e íntimo desenrolado no espaço simbólico e concreto da casa, e entre palavra e desenho, é o leitor/observador que tem o papel do narrador. Do que estabelece os percursos. Do que cria o seu próprio itinerário.
Pela minha parte, no meio do meu próprio labirinto, as doze micronarrativas de Gonçalo M. Tavares, de algum modo amorais e de muitos modos provocadoras, fazem-me pensar em algumas formas de contos tradicionais. Curtas, sintéticas e cirúrgicas, o escritor usa a escrita como um bisturi. Trazendo a sua satírica observação para temas quotidianos ou do universo da fábula, estas breves abordagens ficcionais — de algum modo captações de para-realidades que, se não são verdadeiras, são verdadeiros achados — abrem a porta para um lado da observação da natureza humana, muito à flor da pele e do momento, do que nos move além de toda a consciência, além de qualquer empatia.
Nelas, de algum modo, o escritor faz de não escritor. Porque o escritor, pela sua natureza intrínseca, é um ser dado às perguntas, à obsessão da observação e do questionamento. O que faz com que aquele seja o que é e o que move o seu devir? Mas, aqui, os dados são oferecidos como se não tivessem sido analisados, como sendo apenas dados à nossa exposição e juízo, como alguém que nos serve uma refeição deixando sobre a mesa todos os ingredientes por preparar e cozinhar. Este é o meu corpo. Come-me. E como queres que o coma? É contigo.
A desenhadora, por seu turno, faz de ficcionista. Embora sendo-lhe permitida a síntese da aparência, ela usa a pintura, como interpretação e narrativa. Toda a narrativa está carregada de porquês. E, por isso, este trabalho está carregado de intenções. É outra maneira da falar de tensões.
No essencial, quis dizer que curadoria pode perfeitamente ser um modo de contar estórias. Esta tem como título “A narrativa são os outros”. No exercício do auto-retrato, os artistas socorrem-se de espelhos para os elaborar. Aqui, não existe espelho. Escritor e desenhadora apresentam-se de frente para os outros. Esses outros somos nós. E é a nós que cabe completar a narrativa.
Emília Ferreira
Almada, 25 de Fevereiro de 2023.